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Oscar em tempos de pandemia

O que mudou no perfil dos vencedores da premiação e como o COVID-19 tornou o cinema mais inclusivo.

 

Durante sua vida adulta, a peste bubônica fechou os teatros para William Shakespeare em pelo menos cinco ocasiões distintas. Somente com as igrejas abertas, qualquer local de entretenimento foi bloqueado pelo medo do contágio. Ficando em quarentena, um dos maiores dramaturgos de todos os tempos se resguardava em casa enquanto escrevia e planejava o futuro. Do isolamento, surgiram obras clássicas como “King Lean” que tiveram de esperar o surto abrandar para ver a luz do dia, ou melhor, a luz dos palcos. Se tal constatação serve de consolo para milhares de artistas que enfrentaram e continuam lidando com as restrições do COVID-19, o mesmo não se pode dizer sobre a indústria do entretenimento em si.

Tradução do letreiro: “Cinema fechado até a vida real não parecer um filme.

Fiquem salvos, sejam gentis”.


Antagônico a Inglaterra do século XVI, hoje a cultura opera dentro de uma ótica de mercado em que sua estruturação funciona de maneira global e escalonada. Se algo não atua como previsto existe a possibilidade de tudo colapsar em proporções shakespearianas. Só para se ter uma ideia, os lucros na bilheteria mundial com o cinema caíram 81% quando comparados ao período pré-pandemia. Tamanha mudança não sairia incólume, muito pelo contrário. Reações claras ao “novo normal” levaram a profundas adaptações de Hollywood e demais centros cinematográficos. Não ficando de fora, o mesmo ocorreu com a premiação do Oscar.

Dois movimentos começaram em 2020, se consolidaram em 2021 e agora pairam incertezas sobre suas permanências ao longo de 2022. O primeiro deles foi o aumento dos serviços de streaming como alternativa para os cinemas fechados. Somente neste período, plataformas online com catálogos de filmes cresceram 35% globalmente sobre sua base previamente instalada. A outra mudança não diz respeito à distribuição em si, mas ao formato da narrativa. Nestes anos de pandemia o que se observou foi a postergação dos blockbusters em prol de filmes menores do ponto de vista orçamentário.

Equipe de “Vingadores: Ultimato” em foto após as gravações.

O filme custou US $360 milhões.


Cineastas só puderam trabalhar com pequenas equipes, um número menor de atores e orçamentos enxutos. Desta maneira, sai de cena grandes produções para dar lugar a histórias contidas, projetos pessoais e intimistas. Em entrevista no ano de 2016, o diretor Martin Scorsese reclamava sobre a falta de espaço em Hollywood para o surgimento de novos nomes que pudessem injetar na indústria um sopro criativo. Em muito, sua crítica foi direcionada ao imediatismo e sucesso garantido que bilionárias produções exigem, não havendo assim espaço para a experimentação e visões particulares nos filmes. Contudo, o consagrado cineasta mal sabia que a pandemia forçaria os estúdios a novamente enxergar neste tipo de produção a saída para o caos sanitário.

E o que o Oscar tem a ver com isso? Tudo. A premiação funciona como um espelho de todos estes percalços. Basta ver a lista dos indicados nos últimos três anos para constatar a predominância de médias produções que trazem seu diretor/autor ao protagonismo. Em 2020 quem levou a estatueta foi a obra sul-coreana “Parasita” de Bong Joon-ho, seguido por “Nomadland” de Chloé Zhao em 2021 e, na última premiação, “CODA” de Sian Heder ganhou melhor filme tendo custado apenas 10 milhões de dólares – troco de bala se tratando de Hollywood e um dos recordistas quando o assunto é baixo orçamento.

Pôster do filme ”CODA”, ganhador do Oscar, que conta a história de Ruby,

a única pessoa que ouve em uma família de surdos.


Além dos prêmios dados durante a pandemia, os três filmes têm em comum o fato de serem projetos pessoais de seus realizadores, ou seja, obras gestadas ao longo de anos e que perpetuam visões únicas sobre os assuntos por eles abordados. Longe de serem épicos, trazem holofotes para o relacionamento humano entre pessoas excluídas socialmente e evitam concluir de forma decisiva os rumos de seus personagens. Funcionam como recortes de nosso mundo, um simulacro em que não existem vilões, mocinhos e donzelas – apenas pessoas lidando com seus problemas e a dura realidade que estão submetidos. Não é à toa que seus diretores são um estrangeiro e duas mulheres, algo difícil de encontrar em antigas premiações do Oscar em que os integrantes da Academia são compostos por 70% homens, 84% brancos e com uma média de idade acima dos 60 anos.

E esta percepção não fica restrita somente aos vencedores de melhor filme. Neste ano de 2022, por exemplo, tanto Jessica Chastain e Will Smith (vencedores respectivos de melhor atriz e ator) encarnaram biografias que igualmente eram projetos pessoais que já procuravam por espaço antes da pandemia. Não só atuaram, mas participaram ativamente enquanto pesquisadores, produtores e realizadores das obras. No caso de Chastain, o longa “Os Olhos de Tammy Faye” levou 8 anos de preparação e convencimento uma vez que a atriz batalhou acreditando no potencial e força da história ali presente. Já Smith se aproximou por conta própria da família Williams para conseguir os direitos de transformar a vida do pai das tenistas Serena e Venus em “King Richard, criando campeãs”.

Jessica Chastain e Will Smith, vencedores de melhor atriz e ator em 2022.


Nas últimas décadas, o Oscar buscou formas de tornar o evento inclusivo e plural por pressões internas e externas, principalmente por estar perdendo audiência ano após ano e sofrendo com boicotes dos realizadores. Com o advento do COVID-19, por questões mercadológicas, de certa forma este movimento se deu de maneira involuntária. Praticamente, vozes femininas, latinas, estrangeiras e negras sempre circundaram as produções e estavam na espreita apenas esperando o momento oportuno para ganhar vida.

Os problemas envolvendo preconceito, acessibilidade e representatividade ainda são históricos e complexos quando se trata da indústria cinematográfica. Mas, o que fica nestes três anos da premiação é a possibilidade de achar um espaço para médias produções como instrumento de diálogo com temas que dificilmente seriam abordados nos astronômicos orçamentos das megaproduções. Assim como Shakespeare, em um momento tão difícil como o da clausura pela quarentena, cabe a reflexão sobre nosso momento e o que podemos tirar de melhor. Fica a dúvida sobre como o mercado vai reagir com os cinemas abertos em capacidade total, se este período da pandemia foi apenas um capítulo de páginas viradas ou se aquilo que ele trouxe de mais plural permanecerá.

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