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Cannes versus Netflix: Para onde caminha o cinema atual?


Em certa ocasião, ao falar sobre as mudanças dentro do jornalismo depois do advento da internet, o escritor Millôr Fernandes disse: “O homem é um animal que adora tanto as novidades que se o rádio fosse inventado depois da televisão haveria uma correria a esse maravilhoso aparelho completamente sem imagem”.

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Mesmo em tom de brincadeira, esta frase não deixa de demonstrar o quão difícil é compreender o “novo”. Não existe algo superado, simplesmente relegado ao esquecimento. Não ocorre uma substituição do recente pelo antigo – as coisas simplesmente coexistem em paralelo, ou então, transformam umas às outras.

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E quando se fala em tecnologia e hábitos de consumo, tudo fica ainda mais complicado.

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No último 25 de maio se encerrou na França o aclamado prêmio de Cannes. Cineastas, atores e produtores desfilaram pelo tapete vermelho, diversas estreias foram aplaudidas de pé e incontáveis veículos de comunicação se acotovelaram em busca do melhor ângulo para as fotos. Contudo, nos bastidores, situações menos glamorosas aconteciam e, em muito, dizem respeito ao novo.

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Dois dos filmes premiados este ano em Cannes serão exibidos mundialmente pelo serviço de streaming Netflix. Pela internet, espectadores de todos os cantos vão conferir o drama Atlantique, vencedor do grande prêmio do festival, e a animação I Lost My Body, que levou o prêmio da semana da crítica.


Atlantics é um filme de drama senegalês dirigido por Mati Diop. A cineasta fez história ao ser a primeira mulher negra a dirigir um filme apresentado em Competição no festival. Já I Lost My Body, do diretor Jeremy Clapin, utiliza do realismo fantástico para contar um romance envolto em uma França que ainda não resolveu seus problemas relacionados a pobreza de suas periferias.

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Nada de estranho até aqui caso não fosse o clima de guerra existente entre as duas partes.

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O festival de Cannes “impede” que filmes da Netflix concorram na mostra do evento, isto em decorrência de uma série de medidas que só foram estipuladas a partir dos avanços que o streaming alcançou nos últimos anos. Todos os longas-metragens participantes devem ser exibidos nos cinemas franceses e, somado a esta regra, qualquer produção só pode estar disponível nas plataformas digitais após 36 semanas depois das telonas – algo inviável comercialmente para as produções originais do canal de streaming.

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Assim, a Netflix se recusa a lançar seus títulos no país. E esta situação só piorou depois que em anos anteriores seus filmes cumpriram com os requisitos e mesmo assim foram boicotados (ou até mesmo vaiados) nas salas de exibição. Por este motivo, a única aparição da marca neste ano em Cannes não se deu com diretores, atrizes e roteiristas, mas sim com uma equipe de aquisição que procurava – e concretizaram – a compra dos filmes mais badalados lá exibidos.

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Este episódio demonstra o quanto a indústria cinematográfica procura seu lugar dentro deste mundo tão interligado e instantâneo. Alguns cineastas como Nolan e Spielberg ainda têm ressalvas quanto a mudança da sala de cinema ser, por excelência, o local ideal para se ter a totalidade da experiência que um filme oferece. Outros, como Scorsese e Cuarón (inclusive, o último diretor ganhador do Oscar por um filme original da Netflix), acreditam que o alcance prevalece sobre a qualidade de exibição.


Filme Roma de Alfonso Cuarón ganhou o Oscar de melhor diretor. Para isso, a produção original Netflix teve que cumprir uma série de requisitos, como por exemplo, a de colocar o filme em um número mínimo de salas de exibição.

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Contudo, esta discussão diz muito pouco sobre “experiência” e “qualidade” em si, e muito mais sobre quem está ganhando.

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A regra para um filme ingressar em Cannes não fica restrita somente a premiação francesa. Outros festivais também a seguem de maneira semelhante enquanto importante mecanismo para assegurar mercado, afinal de contas, a estrutura clássica envolvendo estúdio, distribuidoras e exibidoras existe a mais de um século e não ficaria esperando de braços cruzados as mudanças que se aventam no horizonte.

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Muito pelo contrário.

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A batalha entre o cinema “fora de casa” versus o cinema “em casa” não é nova. Na década de 50 o inimigo da vez era a televisão. Em um primeiro momento, surgiu a dúvida sobre como competir com entretenimento exibido diretamente nas casa das pessoas, sem custo? A resposta veio nos anos seguintes de diferentes maneiras. Primeiro, através de filmes cada vez mais épicos que forçaram as pessoas até o cinema, depois, a criação de divisões voltadas exclusivamente para produção de TV e, como forma definitiva, a compra dos principais canais pelos grandes estúdios (Disney, Fox, Paramount, etc).

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Já nas décadas de 70 e 80, a concorrência passa a ser o chamado home entertainment, ou seja, videocassete e a TV por cabo. Mais uma vez, o mercado cinematográfico titubeou no começo, mas logo encontrou alternativas, seja ao criar janelas de exibição específicas para o lançamento em fita (meses após o filme sair de cartaz), ou então, ao criar seus próprios canais por assinatura que poderiam ter suas produções dentro da programação de maneira contínua.

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As primeiras movimentações quanto ao streaming apontam respostas semelhantes. Seria então o Netflix comprado ou então engolido pelos grandes estúdios?

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E aqui vale a ressalva que com seus mais de cem milhões de usuários em todo o mundo, o gigante Netflix não é o santo da história. Diversas práticas do aplicativo são duramente criticadas por profissionais da área, como por exemplo a falta de transparência na divulgação de seus números ou então na falta de inventividade das suas produções já que o serviço sempre recorre aos algoritmos para definir no que investir.

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Contudo, estas discussões ficam para outra postagem aqui do blog.

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Por hora, fica o panorama desta queda de braço entre distintas visões sobre para onde o mercado cinematográfico caminha. De um lado, aqueles que não querem deixar a sala de cinema morrer – ou pelo menos perder força – e do outro, os que pensam que “mais é melhor” independente do dispositivo. No meio de tudo isso, fica o espectador. Muitos inclusive já acostumados a assistirem filmes tanto em uma poltrona dentro de uma sala escura ou então no banco do ônibus na volta do trabalho.

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Enquanto o mercado não se ajeita para que todos saiam ganhando, impositivos são colocados no intuito de minar as forças da concorrência. Quem perde com isso? A resposta parece óbvia...

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Ah, e caso queiram ver os filmes premiados em Cannes pelo Netflix, só daqui 36 semanas.

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