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Boicotes de filmes na Rússia

De que forma a indústria e grandes festivais de cinema estão agindo durante a guerra na Ucrânia. Proibir é a melhor solução?

 

Durante o século passado, a indústria do cinema foi amplamente utilizada dentro das estratégias geopolíticas de países envolvidos em conflitos. Seja durante as guerras mundiais, ou ao longo das décadas subsequentes na queda de braço entre EUA e URSS, os filmes desempenharam importante papel ao propagandear valores e visões relacionados aos governos, entidades e grupos envolvidos. Não é à toa que os vilões de James Bond sempre se adaptaram ao tempo, passando de alemães para russos até chegar em células terroristas conforme os anos avançavam.

Eis que agora, em tempos de guerra na Ucrânia, o cinema novamente entra na discussão envolvendo seus usos dentro do contexto global. Afinal de contas, sua penetração no mundo intimamente interligado de hoje implica decisivamente na economia, política e causas humanitárias como um todo.

Gigantes da indústria norte-americana, como Disney, Warner, Paramount e Sony, anunciaram que só vão exibir seus lançamentos quando Vladimir Putin anunciar cessar-fogo. Os russos já não verão o novo "Batman", com Robert Pattinson, nem estreias próximas como "Morbius", “Red - Crescer É uma Fera", "Sonic 2: O Filme" e "Cidade Perdida", sendo que a lista tende a só aumentar. Iniciativas como estas impactam decisivamente o mercado cinematográfico, já que o país do leste europeu é muito importante, seja no sentido do consumo ou de sua produção local.

Poster do filme “Batman”, o primeiro de muitos blockbusters boicotados na Rússia.

A decisão do boicote é pensada equalizando esse contrapeso, como uma lógica colocada na balança. De um lado, há um efeito simbólico no isolamento, da estigmatização e pressão sobre o governo de Moscou. Já do outro, a grande perda mercadológica sentida pelos estúdios ocidentais.

Apenas para ilustrar, neste começo de Março, títulos como “Morte no Nilo” e “Uncharted” ocupam os primeiros lugares da bilheteria russa. Anteriormente, “Homem-Aranha: Sem Volta para Casa” alcançou a marca de US $44 milhões e “Venom: Tempo de Carnificina” outros US $32 milhões no país. Vale apontar um detalhe particular do mercado russo que faz com que os dois lados desta equação se misturem ainda mais. Mesmo que as salas de cinema do país sejam privadas, as plataformas de publicidade são todas estatais, o que, de forma direta, ajudaria a financiar o governo Putin.

Contudo, os impactos dentro da indústria não se restringem apenas aos filmes de super-heróis ou em animações infanto-juvenis. Para além das sanções que geram grandes impactos econômicos, renomados festivais estão aderindo ao boicote. Depois que a Academia de Cinema da Ucrânia criou uma petição virtual pedindo retaliação à Rússia, o Festival de Glasgow, que começou neste mês de Março no Reino Unido, baniu dois filmes russos da programação ("No Looking Back", de Kirill Sokolov, e "The Execution", de Lado Kvataniya).

Cartaz do Festival de Glasgow, o primeiro a restringir filmes russos nas suas mostras.

O mesmo ocorreu com o Festival de Estocolmo, da Suécia, que retirou da programação filmes com financiamento estatal do país. Já o Festival de Cannes, na França, não aceitará a presença de delegações oficiais ou qualquer pessoa ligada ao governo de Putin no evento. Indo mais além, autarquias que regem o segmento cultural na Ucrânia pedem maior recrudescimento no campo artístico. A iniciativa fez alguns pedidos específicos para a Convenção Europeia de Coprodução Cinematográfica, visando excluir a Rússia do organismo de financiamento para barrar coproduções, e para a Federação Internacional de Associações de Produtores de Cinema, solicitando que retire o credenciamento do Festival Internacional de Moscou do seu circuito de eventos.

Festival Internacional de Moscou que corre o risco de não acontecer em 2022, ou ficar sua mostra restrita a apenas filmes russos.

Se tornando uma tendência global, a prática do cerceamento cultural frente à Rússia pode esconder problemas graves relacionados a artistas que utilizam seus filmes como forma de denunciar a realidade do país através de suas óticas pessoais. A replicação de um movimento punitivista acaba estigmatizando toda a população e seus bens culturais, aproximando assim automaticamente qualquer filme russo à política externa praticada pelo Kremlin. Reconhecidos historicamente como lugares plurais que promovem debates entre seus participantes, os festivais acabam por silenciar possíveis expressões internas sobre o cotidiano russo de alguém que vive naquele contexto e que busca denunciar a realidade ali sentida.

O fenômeno do boicote em salas de cinema e festivais também surpreende porque isso não ocorreu em conflitos recentes. A própria Europa abriu fundos para ajudar a fomentar produções de países que têm suas democracias em risco. Vale lembrar que mesmo sob os embargos durante a Guerra Fria, os Estados Unidos colaboraram de forma indireta com a produção de filmes em países próximos da URSS. Diversos documentaristas cubanos, por exemplo, mesmo no período do isolamento em relação ao ocidente, levaram suas obras a festivais do mundo inteiro no intuito de mostrar o que acontecia internamente na ilha.

Até o momento da publicação deste texto, as negociações entre Rússia e Ucrânia não preveem cessar-fogo. Resta então para as câmeras do audiovisual apenas registrar a atualidade para posteriormente mostrar ao mundo as várias facetas do conflito. Em algum momento, o cinema russo retornará ao circuito mundial e o cinema mundial retornará ao circuito russo. Cabe observarmos de que forma isso ocorrerá e quais rusgas permanecerão economicamente e culturalmente nesta relação.

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