Como roteiristas e diretores utilizam dos bichos para falar sobre nós
O que passa pela sua cabeça ao escutar a palavra “hiena”? Ou então, sem contexto algum, o que surge na sua mente ao ler a palavra “babuíno”? É praticamente impossível não acessarmos em nosso imaginário certas imagens destes animais atreladas ao filme “O Rei Leão”, de 1994, que tanto impactou o cinema e uma geração. A representação dos bichos é algo construído ao longo dos séculos dentro da cultura humana e sensibiliza decisivamente nossa percepção não apenas sobre os animais, mas de seus usos dentro de uma narrativa.

As hienas são vilãs; o lobo é mau; o porco é inocente; tubarões são assassinos; peixes-palhaço são engraçados; orcas só querem matar; corujas são inteligentes. Não é de hoje que nos apropriamos do mundo animal e a eles “emprestamos” características humanas. As fábulas ressurgiram no século XVII como uma forma velada de crítica social em que muitos escritores atribuíam aos bichos o poder da palavra e da razão, descrevendo-os como criaturas sensíveis, inteligentes e emotivas. Desta forma, suas histórias tratavam metaforicamente a sociedade através da incorporação de sentido aos animais, mas que, na verdade, estavam falando sobre nós o tempo todo.
No cinema não seria diferente. Ele se formou tendo por base um arcabouço referencial de outras artes, de outras manifestações culturais, mas rapidamente criou sua própria linguagem e usos. E foi através da repetição de formas, do contato cotidiano com todos os tipos de plateias, que o seu vocabulário tomou forma e se expandiu, com cada cineasta enriquecendo o vasto e invisível dicionário que hoje todos nós consultamos ao vermos um filme. Afinal de contas, nunca entramos em uma sala de cinema – ou damos play no streaming – de forma inocente. No contato com o conteúdo, a todo momento estabelecemos uma troca entre aquilo mostrado com nossas visões de mundo, gostos pessoais e estereótipos. Muitos destes, inclusive, são fruto daquilo que consumimos anteriormente em outros filmes e que carregamos para o próximo.
Isto acontece em muitos casos com animais que integram uma narrativa cinematográfica. De tanto vermos suas construções regressas, já esperamos algo quando eles aparecem na tela. O audiovisual se apresenta enquanto linguagem que representa determinado imaginário e que é compreendido por seus espectadores devido à unidade cultural compartilhada entre todos. Um diretor, roteirista, fotógrafo e/ou produtor acessa estas representações já assimiladas por boa parte das pessoas para ativar sentimentos, reações e opiniões – “de que maneira posso fazer meu público ficar nervoso, empático, amoroso ou então ter medo sem perder tanto tempo?”. Em muitos casos é só ativar o que já está lá no inconsciente.
Exemplificando, logo na primeira cena da premiada série “House of Cards” da Netflix, o diretor David Fincher procura estabelecer perante o público algumas das principais características do seu protagonista: Frio, calculista e impiedoso. Em uma caminhada já de noite, Frank Underwood escuta de longe um acidente de carro. Chegando no cruzamento, encontra um cachorro atropelado ainda agonizando de dor. Sem titubear, mata o animal e diz para a câmera que o trabalho dele enquanto senador dos EUA é justamente fazer aquilo que as pessoas não têm coragem. Esta sequência em si já diz muito sobre o personagem, mas também revela nossa percepção sobre o uso do animal para chegar a este fim.
Imagine uma outra abertura para a série em que, ao invés do cachorro, Frank mata um ser-humano a sangue frio. De certa forma ficaríamos impactados, mas nosso inconsciente nos levaria a indagar sobre suas motivações, o que possivelmente aquela pessoa o fez anteriormente, qual o vínculo estabelecido entre os dois, enfim, não seria conclusivo pois já estamos acostumados com cenas desta natureza em Hollywood. David Fincher, então, utiliza o “melhor amigo do homem” propositadamente. Ele não quer dúvidas pairando na plateia. E qual melhor maneira de fazer isso do que mostrar o protagonista matando um inocente, companheiro e amoroso cão logo de cara? Se utilizando do cachorro, o diretor dá um cartão de visita claro sobre o personagem se pautando na visão pregressa do espectador, da unidade cultural compartilhada entre todos sobre o animal em questão.

Scooby-Doo, Beethoven, Rin-Tin-Tin, Marley, Pluto. O cachorro detém extenso legado cultural dentro do cinema, indo desde o papel de “bons rapazes" até heróis que ajudam seus donos a solucionar crimes. Ao longo dos 15 mil anos de sua domesticação, tivemos muito tempo para cultivar relações de proximidade e estabelecer uma mitologia em torno do cachorro que é reforçada a cada novo lançamento nos cinemas. Quando um cão entra em cena, nós, como público, pressupomos várias características que são normalmente comprovadas ao longo da narrativa. Leais, fiéis, corajosos, de coração puro e inocentes que, caso sejam vilanescos, apenas refletem a condição que foram tratados por seus donos. Afinal de contas, não existe cão mau, apenas humanos inescrupulosos.
Nada melhor do que trazer um filme de James Bond para elucidar tal afirmação. Tendo vilões em sua maioria caricatos, na obra “007 Contra o Foguete da Morte”, o antagonista Hugo Drax é um bilionário que busca destruir a raça humana, fugir para o espaço e lá começar do zero, inaugurando assim uma linhagem que prima pela ordem e obediência. O personagem se torna ainda mais clichê uma vez que possui como fiéis guarda-costas dois rottweilers que o obedecem a todo custo. Frios, calculistas e inteligentes como seu dono, durante a narrativa eles acompanham o agente secreto de perto, atacam quando solicitados e intimidam visitantes por conta de seu porte forte e, ao mesmo tempo, elegante. Em suma, refletem diversas das características de Drax ao passo que, quando o vilão é finalmente derrotado por Bond, em um passe de mágica o temperamento dos cães acompanha a mudança.

Cachorros, portanto, representam o nosso melhor “eu”. Do mesmo modo, a corrupção de um cão denota o nosso pior “eu”. Partindo desta premissa, a Fauno Filmes realizou um vídeo em que tais preceitos serviram como base para a criação do argumento envolvendo maus tratos em animais. Participando de uma campanha de conscientização, o desafio era justamente abordar o tema sem utilizar cenas reais dos bichos em situações de abandono e violência. Por isso, durante a produção, os animais foram substituídos por semelhantes de pelúcia.

Desta forma, além de utilizar elementos presentes no imaginário das pessoas acerca dos cachorros, outra camada de simbolismo se dá perante o espectador. A inocência dos cães complementa a inocência infantil dos brinquedos, gerando assim situações desconfortáveis mesmo sabendo que são objetos inanimados. O audiovisual se completa não na tela, mas na consciência de quem o assiste graças ao referencial que o espectador já possui.
Assista ao vídeo no link: https://vimeo.com/manage/videos/468303777